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Domingo, à tarde. Luz calma, macia. O atelier de Adriano Mangiavacchi fica numa dessas casas de vila, no Horto, bem ao fundo de um pátio. Chega-se a ele por uma escada externa. Silêncio. No interior do ateliê tudo está em ordem: os vidros, potes e bisnagas de tinta acrílica arrumados na estante ao lado de revistas de arte, pasta com recortes de jornais e catálogos. Cada coisa em seu lugar: espátulas, pincéis, brochas, alguns instrumentos de trabalho que ele mesmo inventou, adaptou ou aos quais deu novos usos. Junto à janela, uma velha foto de senhora e um recorte de jornal mostrando uma pessoa pisoteada. Uma cadeira baixa e desconfortável contrasta com esta ordem impecável.
 

Encostadas à parede estão algumas telas. As outras, ele as retira, uma a uma, de um compartimento ao lado. Telas  enormes. Diz com frequência que estão inacabadas. Vai dizendo, entre silêncios prolongados: esta área aqui está muito delicada em contraste com a violência das demais cores, preciso eliminar estes riscos, integrar esta macha branca ao conjunto. Às vezes, em seu processo criador, Adriano deixa um quadro de lado,como se quisesse deixá-lo viver sua própria vida, se completar sozinho, retomando-o tempos depois, como que à espera de alguma revelação.
    

Estou sentado na cadeira desconfortável e começo a me perguntar: estarão mesmo inacabados estes quadros ou Adriano apenas exercita sua dúvida diante de mim, à espera de uma opinião? Ou um quadro continua no outro, formando uma única obra... em processo? E acabo por me distrair numa sucessão de perguntas, como se fossem abismos. Qual o momento exato em que a tela se completa, isto é, quando se dá o insight conclusivo? Ou, ao contrário, qual o momento da epifania criativa? Quando o artista se coloca, burocraticamente diante da tela branca, todos os dias, ou raivosamente, num momento de ímpeto emocional? O quadro nasce ali mesmo no ateliê, fruto da decisão do artista em executá-lo, consciente de seus compromissos com a história da arte, visando sua inserção no circuito de arte, ou ele já estava pronto em algum lugar obscuro da memória, distante no tempo e no espaço daquele calmo ateliê? O enigma daquela foto na parede não me oferece a resposta, mas interrompe o fluxo de indagações.

Adriano continua desfilando seus quadros, que ele executa compondo séries caracterizadas por uma dominante cromática ou por uma certa organização espacial. Vendo-os, começo a perceber que aquela ordem do ateliê é artificial, ou melhor, ela é um álibi. Na verdade, Mangiavacchi é um artista dilacerado pela dúvida, mergulhando fundo na ambigüidade da arte atual, que não oferece mais o conforto das regras acadêmicas, das fórmulas ou dos significados preestabelecidos. Há uma intensidade emotiva no seu processo criador que vai aos poucos queimando toda ilusão de uma ordem prévia.Há um tesão criativo que é ao mesmo tempo uma tensão moral. Os contrastes de cor e forma, os diferentes ritmos da pincelada, a variedade de gestos mais ou menos construídos, mais ou menos espontâneos. são o caminho para que o signo emerja, impactante, na superfície da tela. Os conflitos ou choques de situações são a marca de Adriano Mangiavacchi – na arte como na vida. Nasce em Roma em 1941. A guerra vai deixa nele a marca da violência, da luta pela sobrevivência. Mas também a sensualidade do barroco romano deixa as suas marcas. Opulência e sofisticação de um lado, miséria e sentimento classista de outro, tradição e modernidade, sironi (o social) e Vedova (o pictórico), arte como denúncia e arte enquanto estrutura em si mesmo significante, símbolo e signo, figura e abstração.
 

Vivendo no Brasil há 18 anos, durante algum tempo oscilou entre a engenharia (como profissão) e a psicanálise (como apoio), entre a segurança de um bom emprego numa multinacional da indústria automobilística e a aventura permanente da arte. Tendo optado finalmente pela arte, continua atraído pelos contrastes e conflitos: a pulsão gestual de Luiz Áquila e a metodologia de Paulo Garcez, seus professores, a absorção crítica do desenho infantil e o resgate de velhos muros erodidos pelo tempo e pela ação política (resto de cartazes e inscrições). Começou sua carreira em pintura des-velando a intimidade dos jogos eróticos femininos, hoje procura erotizar o próprio gesto e a cor. O ataque à tela é direto, sem a intermediação do desenho.
 

Durante algum tempo, fotografou esses muros – mas com intenções formalísticas. Hoje sua pintura tende igualmente a uma aproximação mais formalista a essas motivações urbanas, simultaneamente a um conhecimento mais íntimo da história da arte – possíveis influências expressionistas e informais: Appel, de Kooning, Vedova, Guinle. Contudo, há em sua pintura uma entropia figurativa, a presença arquetípica, no centro da tela, como eixo da composição, de uma figura espécie de sombra ou eco. Narciso redivivo ou apenas o eu destroçado.  Estou resistindo a uma interpretação psicanalítica dessa presença – a velha fotografia na parede ainda me atrai e me perturba.
    

Fica criada, assim, uma descontinuidade visual entre fundo e superfície, um conflito entre a vontade de se alcançar o específico pictórico, puros planos de cor, matéria sobre matéria, e uma figuração que Mangiavacchi ainda considera fundamental e que procura tratar dramaticamente. De seus quadros, na aparente calma do ateliê, ecoa um grito, como daquela figura pisoteada.

Texto de Frederico Morais para o catálogo da exposição na Galeria Saramenha,

Rio de Janeiro, 1988.

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